Archive for fevereiro \26\+00:00 2012

Incentivo ou paliativo eleitoreiro?

Henrique França
@RiqueFranca

À primeira leitura, a proposta parece fazer sentido: professores efetivos dos níveis fundamental, médio e superior, no Brasil, seriam isentos de pagar o Imposto de Renda Pessoa Física sobre a remuneração docente. É o que sugere o Projeto de Lei 2607/11, de autoria do deputado carioca Felipe Bornier, que está em análise na Câmara Federal. A notícia, publicada no sítio da Casa, lista as justificativas do PL: compensar os baixos salários com a isenção do IR e incentivar aspirantes ao magistério para que ingressem de corpo, alma e menos tributos na carreira docente. A intenção de Bornier pode até ser a melhor possível, mas como disso o Congresso Nacional está cheio, as implicações de tamanha bondade parlamentar merecem ponderações.

Primeiro, o que justificaria, do ponto de vista legal, de igualdade perante a Lei, a diferença de obrigatoriedade com a altíssima arrecadação tributária imposta no Brasil entre professores e profissionais autônomos, por exemplo, ou entre professores e artesãos, vendedores, advogados, médicos, secretárias? Se transformado em lei, o projeto em análise deverá ser contestado, e com razão, por milhares de outros profissionais, há muito massacrados pela penca de impostos tupiniquins, que ganham tão mal ou pior que docentes brasileiros e, ainda assim, estariam obrigados a declarar e pagar por seus rendimentos. Aprovado o Projeto, o professor seria considerado uma espécie “privilegiada” pelo “incentivo” legal.

Diante disso, ou o deputado Felipe Bornier não entende nada de valorização decente, nem de sistema educacional eficiente, ou entende demais de segundas intenções. Afinal, não seria mais justo, respeitoso e correto pleitear melhores condições trabalhistas à categoria? É notória a dificuldade às ideias engessadas do poderio brazuca, mas, que tal deixarmos a política do assistencialismo de lado e apontar para mais contratações, melhor infraestrutura das escolas públicas, participação direta do professor nas decisões educacionais e, claro, melhores salários? Por que não dar ao docente a oportunidade de ganhar mais e não de ter menos de seus rendimentos subtraídos? Parece simplista demais lançar para a tributação o “privilégio” docente, quando esse profissional nunca buscou privilégios – se assim o fosse existiriam ainda menos professores no Brasil. O educador deste País quer, sim, respeito ao ofício.

Não é novidade, mas mantemos o constrangimento de alguns e a falta de vergonha de outros em sapatear sobre a notícia de que, no Brasil, ser professor significa fazer parte de uma das categorias do serviço público com piores salários – em algumas instâncias, eles chegam a ser de longe os mais baixos. O mais irônico – para não dizer crônico – é que cerca de 2 milhões de educadores do Ensino Básico brasileiro sequer precisam declarar o Imposto de Renda, a priori, simplesmente por receberem bem abaixo do valor mínimo anual (R$ 22.487,25). Atualmente, esses nada privilegiados recebem menos de R$ 15 mil ao ano. Ou seja: para esses o Projeto de Lei seria sem qualquer efeito diante da extrema subvalorização pecuniária.

Um País que subsidia montadoras de veículos e extrativistas rurais deveria voltar-se efetivamente à educação. É óbvio que a comemorada redução de tributos pela indústria dos automóveis e por latifundiários não se encaixa na docência. Educação não é negócio e professor gosta de espalhar sementes, não de juntar reservas no celeiro. Quem ajuda a formar uma sociedade (de sua base cidadã à pesquisa aplicada, do engenheiro mecânico ao filho do agroempresário) deveria receber do Congresso Nacional uma proposta com vistas ao futuro – não um paliativo que pode até ser de “boa-fé”, mas deixa razões suficientes para uma avaliação do tipo ‘eleitoreira’. Está mais do que na hora de o Brasil tratar seus professores de modo honroso. Caso contrário, pagará no amanhã um preço social tão alto que nem a isenção total dos tributos fará arrefecer tamanha dívida com quem tem ensinado a esse País o caminho do conhecimento e os passos da esperança.

[Texto publicado no Jornal A União, edição de 26 de fevereiro de 2012]

Compensando bandidos

Henrique França
@RiqueFranca

Toda vez que a ‘turma de Brasília’ começar a tramar mudanças legais pouquíssimo alardeadas aos ‘súditos’, esteja certo: há interesse direto da ‘nobreza’ tupiniquim na trama. É o caso da proposta analisada no Senado que sugere diminuir automaticamente, em até um sexto, a pena do réu que tenha seu crime alardeado pela imprensa. A justificativa para esse tópico de reforma do Código Penal vem travestida do termo “abuso da imprensa” e funcionaria como uma espécie de “compensação” ao condenado pelo suposto excesso da mídia.

A notícia veio à tona, mais fortemente há poucos dias, quando foi anunciada a pena do paraibano Lindemberg Alves, condenado a 98 anos de prisão por crimes como cárcere privado, porte de arma ilegal e o assassinato da menina Eloá Pimentel, de 15 anos, ocorridos em 2008. Transformado evidentemente em ‘show’ de notícia, o caso pode entrar na lista dos crimes ou criminosos “compensados” pela superexposição de suas traquinagens de banditismo em rede nacional. O mesmo ocorreria, por exemplo, com o jornalista Pimenta Neves (pelo assassinato da namorada e jornalista Sandra Gomide), a menina Suzana von Richthofen (pelo assassinato dos próprios pais), Alexandre Nardony e Anna Carolina Jatobá (pelo assassinato da menina Isabella, filha do próprio assassino), o juiz Nicolau dos Santos Neto (pelo desvio de dinheiro do Fórum Trabalhista de São Paulo) e tantos outros…

Apesar da proposta absurda – para não dizer desavergonhada -, a proposta vem sendo plantada na ‘corte’ brasiliense de forma sutil, sem os alardes de projetos eleitoreiros que geralmente correm por lá. Por quê? Primeiro, não coincidentemente, a compensação a criminosos vem sendo debatida e elaborada por um subgrupo da comissão especial criada no Senado para formular um projeto de reforma do Código Penal – lembrando que o mesmo CP passou por atualizações no ano passado. Segundo, evidentemente, “abusos” da mídia na cobertura de crimes envolvendo os próprios ‘nobres’ do País do Carnaval trariam boas compensações aos caros (cari$$imos, por sinal) aos próprios feitores da Lei.

Se é isso que o governo federal tem considerado como “controle social da mídia” ou “democratização dos meios de comunicação”, está sintonizando o canal errado. Cercear o fazer da imprensa é um erro básico em qualquer gestão que se diga democrática. O calo, no Brasil, está no “como” fazer: como disponibilizar mais informação de qualidade a todos, de forma gratuita, como garantir o acesso ao fazer notícia, como preparar criticamente as pessoas para tirarem conclusões próprias acerca do que é veiculado na imprensa, como tornar nossos jovens menos alienados e mais questionadores, mais proativos. Essas, sim, são questões relevantes.

O Brasil já possui meios legais para punir os abusos da imprensa – que não são poucos, sem dúvida. Injúria, calúnia, difamação são crimes contra a pessoa, estão no Código e devem ser ferramentas amplamente divulgadas e utilizadas por todos. Talvez seja preciso aprimorá-los. Mas imaginar que a mídia se tornará mais responsável ao lembra-se que a cobertura de um crime bárbaro pode beneficiar o criminoso é tão patético quanto a proposta de “compensação banditista”. A mudança sugerida pelos parlamentares até poderia ser encarada como ingenuidade, estivéssemos nós no País de Alice. Na terra brasilis, porém, a especialidade da ‘nobreza’ é criar alicerces de corrupção e benefício a reizinhos de Copas, Olimpíadas e Carnavais. Mas essa é uma outra parte da história.

O relato de uma dor

Henrique França
@RiqueFranca

            “Escrever dói.” A expressão, dita pelo escritor João Ubaldo Ribeiro, ocupou este mesmo espaço, há algum tempo e em contexto bem diferente. Esta semana, a dor exposta textualmente foi além do ofício e somou-se ao grito abafado de alguém que leu e encontrou, aqui, campo para um desabafo sincero, indignado e desesperado quanto aos caminhos que temos trilhado, enquanto sociedade, rumo à desvalorização da vida.

Via e-mail, as palavras enviadas transbordaram como se alguém precisasse gritar e chorar sem que isso lhe fosse permitido. Mulher, mãe, filha, ser humano, essa pessoa não se derramou em elogios, congratulações ou reclamações, mas em dor e em lágrimas que poucos terão oportunidade de compartilhar, mas muitos poderão facilmente entender. Impactante, a mensagem não foi enviada para ser avaliada gramática ou estilisticamente, mas nos faz parar e pensar sobre decisões e abstenções tomadas como homens e mulheres ditos “inteligentes”, “racionais” e dotados de vida.

Ratificando, suas palavras não vieram buscar publicidade, mas tomei a liberdade e pedi autorização para reproduzi-las, na íntegra, preservando a autoria e sem correções de ordem estética. Porque não há estética que se sobreponha à dor que palavra alguma alcança, nem curiosidade que não se esvaia diante da possibilidade de também sermos vítimas de relatos como este, à espera de uma palavra – escrita, dita ou visualizada – que traga algum conforto, que nos renove a esperança em dias melhores. Segue o relato:

“Até que enfim, encontrei eco para minha indignação, perplexidade… tinha que falar isso antes de me apresentar. Sou ser humano, mulher, filha, neta, mãe, viúva (não gosto deste estado, mas é o civil e servil à legalidade, às vezes injusta) amiga, todas elas pautadas na dignidade, respeito e solidariedade a todo. Devo ter alguns desafetos e gostaria muito de transformá-los em afetos. Mas, voltando ao foco… domingo (saída do bloco das Virgens), segunda (saída das Muriçoquinhas – nossas crianças, ai meu Deus) e nesse dia eu chorei e gritei, um grito surdo, olhei para meus filhos, estavam dormindo; chorei pelo assassinato do meu colega de trabalho Bruno; chorei pelas minhas companheiras estupradas e mortas; chorei por dois jovens que saiam de casa em pleno começo de tarde de um domingo, um deles estudante do curso de Música da UFPB e esse foi gravemente alvejado por disparos de pistola por um coronel da polícia, que achou que poderiam ser assaltantes – ele achoooooooooou; chorei por meu filho que desde agosto do ano passado não sai de casa, como se já não bastasse as limitações que um apartamento oferece, está encarcerado no quarto, vítima de uma brutal abordagem policial onde foram disparados oito tiros, e aí passei a acreditar em milagres, ele saiu correndo em zigue-zague, relato dele e de um anjo que o salvou quando ele já cansado de tanto correr conseguiu esconder-se, mesmo assim foi encontrado e espancado, humilhado, estupidamente e não foi morto graças a intervenção dessa pessoa que pediu para não atirarem, amedrontado não sai mais de casa, abandonou os dois cursos superiores; chorei pelo pavor do meu filho, por mim, por já não saber mais o que fazer. Só sei que há tanto riso, quanta alegria, milhões de palhaços nas ruas e eu, nós, todos que são vítimas da violência consentida, somos os Arlequins que choramos pelo amor perdido pelo ser humano. Mas voltemos a vida real, é CARNAVAL, brinquemos escondendo a dor.”

[Texto publicado no Jornal A União, edição de 18 de fevereiro de 2012]

Tempos modernos demais

Henrique França
@RiqueFranca

 

Charles Chaplin já nos fazia rir e refletir, em meados da década de 1930, com seu filme Tempos Modernos. A “máquina” não pode parar, mesmo que para isso pessoas tenham que ser sacrificadas, desrespeitadas, aviltadas em sua particularidade humana. A fábrica onde o personagem de olhar miúdo trabalha está projetada hoje, cerca de 70 anos depois, para além das quatro paredes de uma indústria. A produção em massa, para nossa infelicidade, também atingiu o intelecto. Grosso modo, somos de forma generalista parte de uma sociedade que pensa igual, age igual, aceita igual. E quem pensar fora dessa engrenagem corre o risco de ser “demitido socialmente” da fábrica de idéias enlatadas.
Não há como mensurar, por exemplo, como fica o coração de uma família que acabara de perder um ente querido para as drogas, a violência gratuita, a guerra do trânsito, a intolerância, o preconceito, ao assistir sua história projetada na mídia – mais especificamente em rede de TV. Difícil controlar o conflito emocional quando os 30 segundos de reportagem sobre a violência são prontamente seguidos por material festivo, não raro sobre um assunto fútil e que mais parece querer desviar o foco do que antes poderia despertar alguma reflexão. Que sensação é essa de ter a dor massacrada pelas gargalhadas de uma nova celebridade ou de fotos indiscretas divulgadas na Internet?
Nos tempos modernos da era digital, a velocidade da informação parece querer nos confundir a todos – até mesmo aos produtores dessa mesma massa informacional. Não há pausas – e não pode haver – para a mínima oxigenação de idéias, do pensar em como tratar o assunto há pouco abordado, digerir os números da corrupção, as propostas de mais punição, os desvios de verbas da educação, o massacre popular, os crimes ambientais e o silêncio das autoridades diante de questões em que a sociedade exigiria resposta se pudesse ao menos parar e pensar um pouco. Não há tempo para o pensamento crítico diante da TV.
Evidentemente, o mundo não gira em torno apenas de desgraças, assim com nem todo operário fabril é igual. Acontece que, da mesma forma com que Chaplin expõe a padronização dos gestos, das ações e reações dos homens que trabalham a seu lado, na esteira da fábrica, o bombardeio de notícias em mesmo tom, dentro do mesmo minuto, no mesmo programa, com se tudo fosse a temática “mundo”, ficamos expostos sem saber ao risco de não perceber a diferença entre a notícia que merece mais tempo de reflexão e aquela descartável, entretenimento pueril.
A indignação sobre a morte dezenas de bebês por negligência médica não mereceria mais aprofundamento e tempo do que o curioso colecionador de carros antigos? O brutal estupro coletivo seguido de mortes de mulheres pode ser equiparado a um momento carnavalesco? São as contradições da vida, diriam alguns. E de fato são. O alerta é que, entre contradições e equiparações há uma linha tênue. E isso tem sido repetido de forma individualista, talvez um reflexo da alienação coletiva diante da mídia. Compare, por exemplo, as mensagens espalhadas como memes nas redes sociais: quantas carregam bons ideais (não confunda com idéias engraçadas), motivos que de fato justifiquem o ‘compartilhar’, o memorizar e o aprender?
É certo que a “fábrica” e sua produção em massa seguirão em ritmo acelerado. O grande desafio desses tempos modernos, porém, talvez seja olhar para além da engrenagem, desacelerar e descobrir que lá fora há muito mais coisas e cores pelas quais vale a pena produzir e viver – detalhe que o adorável palhaço de terno, cartola e bengala, mesmo em preto e branco, descobriu.

[Texto publicado no Jornal A União, edição de 15 de fevereiro de 2012]

Sobre violência, nossos medos e jardins

Henrique França
@RiqueFranca

 

Há um processo de vulgarização da vida em curso, acelerado e próximo, cada vez mais próximo de nós. O amigo que se foi, assassinado, a amiga violentada, um parente seqüestrado, o vizinho baleado, o amor abatido como uma ave de rapina. O homo sapiens tem conquistado o mundo, dominado as tecnologias, andado cada vez mais veloz, desenvolvido máquinas cada vez mais invejadas, e até mesmo criado vida – mas… quanto vale uma vida? O sentido do progresso nos entorpece a tal modo que correr é sempre necessário, produzir é sempre o foco, crescer a renda, o número de seguidores, o prestígio social, a ostentação é quase uma lei. Mas o pêndulo que força excessivamente para um lado apenas acaba arrebentando a engrenagem.

O comemorado homo sapiens tem se tornado uma espécie de monstro sapiens: o intelecto funciona, os sentimentos afloram e as estratégias são ainda mais aguçadas – mas, pra que lado está o pêndulo das ações? Na Cidade Maravilhosa, jovens que tentavam espancar um mendigo redirecionam a violência para outro rapaz, conhecido dos agressores, que acaba moído e segue para a UTI de um hospital onde lhe inserem 60 pinos no rosto. Que motivação seria essa? Dias depois, uma moradora de rua é espancada, leva socos e pontapés de meninos ricos – um deles, médico. O motivo? Um retrovisor quebrado. Quanto custa um retrovisor, diante daquela pessoa com voz, intelecto, sonhos, olhos, amores e sistema vivo semelhante ao dos meninos mimados chateados com a peça de um carro avariada? Quanto custa um carro, mesmo os mais caros?

Na balança social, a vida tem sido desvalorizada. Naquela que então foi chamada Capital da Tranquilidade, adolescentes são estupradas e mortas, homens degolados são jogados nos mangues, jovens são seqüestrados em frente de casa e executados friamente. Motivos? A ausência de respostas, se é que elas existem, potencializa a dor, amplifica o medo, cala o grito indignado de muitos.

Um dia, o pensador russo Vladimir Maiakovski escreveu: “Na primeira noite eles aproximam-se e colhem uma flor do nosso jardim e não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam o nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.”

É difícil agir diante de sentimentos tão conflitantes. Revolta? Pena de morte? Mais punição? Mais policiamento? Mais armas? Mais, mais, mais? Que tal mais desapego, tolerância, educação, informação, gentileza, amor? Que tal colocarmos o foco nas crianças, para que o amanhã seja mais esperançoso? Se não acreditar nelas, em quem acreditar? Até porque, para que elas sejam melhores, precisamos ser adultos melhores, exemplos melhores. E como é difícil esse desafio. Dói ainda mais saber que não há garantias, pois mesmo aquele jardim bonito, com filhos, flores e amigos que cultivamos com tanto amor pode ser pisoteado, como alerta o poeta russo.

Ainda assim, é preferível acreditar, agir, e manter o olhar de esperança. Há uma canção sobre a fé e O Amor que provoca à reflexão, com a frase “esperar em ti é sempre caminhar”. Esperemos dias melhores, caminhando nesse sentido. Esperemos menos violência, trilhando caminhos de carinho. Esperemos mais respeito, optando pela trilha muitas vezes pedregosa da educação, do burilar um cidadão, do perceber que o sentido está na vida e todas as outras coisas são adereços fúteis e passageiros.

Sim, é extremamente piegas “apelar para o sentimentalismo”, dirão os legisladores do pensamento racional. Questões metafísicas não teriam espaço nessa sociedade tecnicista, rápida e, mesmo assim, tão frágil como sempre foi. Então pedimos a eles, enquanto não nos chegam idéias melhores, soluções para a vida. Sim, para a vida. Porque quarar as ruas com policiais durante festejos e afins é bom, mas é paliativo; fazer justiça com as próprias mãos ou buscar vingança pode até trazer alguma sensação de ‘deve cumprido’, mas não cura a dor. Deixemos um pouco de lado as garagens, as salas suntuosas, os escritórios, as coberturas. É hora de cuidar dos jardins, sobre o qual nunca deveríamos ter silenciado.

[Texto publicado n Jornal A União, edição de 11 de fevereiro de 2012]

Imprensa: onde está o problema?

Henrique França
@RiqueFranca

“O problema é a imprensa. Às vezes, tem que botar mordaça na boca de quem faz isso”. Pode até parecer, mas essa frase não foi dita por um militar do período ditatorial ou uma celebridade vítima de invasão de privacidade por paparazzi. Foi esbravejada por um servidor público federal integrante do seleto grupo de 464 funcionários detentores dos chamados “supersalários”, conforme auditoria do Tribunal de Contas da União, em 2009. O vencimento, de R$ 26,7 mil, apesar de pomposo, é inconstitucional e equivale ao salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal.

A frase dos tempos da Ditadura, até por uma questão de inteligência, tem sido pouco verbalizada – mas o mesmo não se pode dizer sobre os pensamentos que ocupam mentes dos denunciados pelo “problema” imprensa. Quem nunca assistiu ao noticiário com a falta de um posto policial prometido há anos e, ao final da edição, a nota de que o gestor denunciado garantira a instalação do serviço à comunidade? Ou como negar a eficiência de repórteres que chegam a conversar com bandidos, encarcerados ou livres, e deles tiram declarações que podem derrubar um diretor de presídio, um secretário, resolver uma investigação? Ou daqueles que revisam processos estagnados e parecem, com suas reportagens, apertar o acelerador da Justiça nacional? Ministros caídos, empresários falidos, ONGs denunciadas, pais agressores detidos, crianças violentadas atendidas. Não é raro que essas sentenças sejam baseadas na “faladeira” imprensa. É ou não é motivo para quem tem motivos reclamar, sugerir o “amordaçar”?

A questão é que a imprensa não é santa, não deve ser vista como fonte de verdade absoluta e tampouco salvadora social. A imprensa é necessária, mas, assim como qualquer entidade que tem reflexos diretos na sociedade, precisa ser necessariamente burilada. Um lapidar inerente, aliás, à própria sociedade. A proposta do crescimento coletivo, evidentemente, beira a utopia – mas seria totalmente surreal?

Problema, mesmo, é a falta de participação, de iniciativa, de envolvimento do cidadão com tudo o que lhe rodeia e interfere na sua rotina. A reportagem sobre lavagem de dinheiro pode até lavar a alma, mas não limpa a mancha da inércia social. Empresas que lucram acima da média no País onde milhares passam fome podem até ser criticadas pelo comentarista predileto, mas quando essa mesma empresa é foco da nossa avaliação, sem microfones e câmeras, nos calamos, como meros espectadores.

Experimente, por exemplo, acompanhar os comentários em uma fila de banco. Há leis que determinam o tempo máximo de permanência do cliente ali. O tempo passa, ultrapassa, maltrata quem espera já sem paciência. Quantos levam a reclamação para além do desabafo local? Há até aqueles que, mais modernosos, aproveitam para postar nas redes sociais o abuso. É a mobilização online sobrepondo o universo “in line”. Quantas queixas nos procons? Quantas pessoas recolhem o bilhete com o horário de chegada e, uma hora depois, exige o carimbo e a notificação do abuso no papel, como prova do desrespeito e do descumprimento à lei? Pouquíssimos. Um exemplo bobo. Mas, consulte os órgãos de defesa do consumidor e decepcione-se.

Contudo, quando a imprensa chega, denuncia, escancara, usa câmeras e aparato de investigador, lava a alma da sociedade – pelo menos quando as lentes não estão voltadas para as nossas faltas ou não ferem algo que nos interessa. Uma pena, porque a imprensa é instrumento, não fim. E uma imprensa forte se faz com uma sociedade forte, que cobra, reclama, opina e exige inclusive da própria mídia noticiosa. Porém, infelizmente, no máximo reclamamos mesmo é quando o sinal da TV sai do ar ou quando o exemplar do jornal não chega à nossa porta. E, muitas vezes, nem isso. Que nos digam os milhares que assistiram ao fechamento de um Jornal de 104 anos da poltrona, como se fosse o fim de uma novela das oito – só que piorado, sem final feliz.

[Texto publicado no Jornal A União, edição de 8 de fevereiro de 2012]

Carnaval, drogas e chatices

Henrique França
@RiqueFranca

“Homem atira contra filho viciado em crack que teve acesso de fúria em SP”. Em um canto de página do Jornal, pouco alardeada nos portais, a notícia vinda do interior paulista deveria causar comoção, provocar algum debate, despertar o incômodo, mas acabou sucumbida por assuntos mais ‘importantes’ ao brasileiro, como a moça que voltou do Canadá e as cenas picantes de um programa que violenta nosso intelecto.

O aposentado que atirou cinco vezes contra o filho de 27 anos quando o rapaz destruía a casa da família foi preso em flagrante. Mas o cárcere doloroso do pai pode ser ampliado para muitas outras famílias brasileiras, com a proximidade da ‘liberdade alienada’ que o Carnaval traz.

Sim, a chamada festa do povo tem suas ‘liberdades’. Embriaguez? É Carnaval! Sexo inconseqüente? É Carnaval! Drogas lícitas e ilícitas? “Só não usa quem já morreu”. Isso sem falar no véu que cobre os olhos de uma nação chafurdada em corrupção, insegurança, ausência de serviços básicos de saúde e respeito. Mas, qual? É Carnaval!

O crack já atingiu cerca 1,2 milhão de jovens brasileiros, recebe 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em combate e tratamento da droga e 30% de seus usuários morrem antes de completar cinco anos de uso. É mais que o índice de óbitos por doenças graves como a leucemia, por exemplo. E, não precisa ser especialista para saber, o Carnaval é um dos períodos de maior fluxo de drogas no Brasil – inclusive momento da adesão de novos usuários.

Apesar disso, a postura de reflexão acerca dos festejos momescos é tratada como careta, retrógrada, moralista e chata. E aí se instaura a tal “liberdade alienada”, tão falsa quanto a sensação de invulnerabilidade de muitos foliões. Carnaval é festa bonita, colorida, alegre e pulsante, sem dúvida. Milhares de brasileiros, porém, parecem acrescentar sentimentos de insatisfação, impotência e extravasamento a essa cesta de adjetivos e acabam se tornando não livres, mas encarcerados pela cólera coletiva do Momo.

Até para aqueles que curtem o Carnaval com responsabilidade, alegria e respeito essas palavras precisam ecoar. Porque ninguém faz folia sozinho – e quem acha que está imune aos efeitos dessa alienação regada a corpos nus e almas vestidas de vazio também é prisioneiro. Prisioneiro da ignorância.

Enquanto traficantes se preparam para aquecer as vendas e conquistar novos “clientes”, o que temos a fazer é começar a mudar os nossos carnavais de dentro para fora. De casa para a rua. Do “não”, quando necessário, diante do “sim” que ‘todo mundo diz’. Porque continuar achando que no Carnaval tudo pode é ter a certeza de que podemos perder tudo: o domínio sobre o corpo, o respeito ao outro, o faro para aproveitadores, o limite do aceitável, a vida.

As campanhas sobre o uso “moderado” de drogas lícitas no Carnaval já começaram. Os alertas sobre aquelas não liberadas também. Boa parte delas vai receber um bom destaque da mídia, ao contrário de notícias como a do pai que atirou contra o próprio filho, viciado e fora de controle, vítima do crack.

Talvez outdoors e jingles divertidos não surtam o efeito desejado junto a foliões, especialmente os mais jovens – pelo menos não se comparados a uma boa base de diálogo, esclarecimentos e limites do lar para a avenida. Porque careta é não falar abertamente sobre os riscos de se drogar, retrógrado é manter-se como um neandertal ignorante em tempos de tanta informação, moralista é subir no palanque para fazer coro e agradar a multidão e chato, gente, é perder a verdadeira liberdade de curtir a vida para muito além de uma quarta-feira de cinzas.

[Texto publicado no Jornal A União, edição de 4 de fevereiro de 2012]

O abuso travestido de direito

Henrique França
@RiqueFranca

Quando criança, aprendemos um princípio básico que, se aplicado com o mínimo de sensatez, pode tornar sem uso boa parte das excessivas leis que nos cercam como carcereiros prontos a admoestar quem ultrapassar o limite da Letra Legal: “o meu direito termina onde começa o do outro”. Porém, crescemos, esquecemos e confundimos lutar por direitos com impor nossos abusos. O caso polêmico protagonizado pelo cartunista Laerte se encaixa nessa confusão de valores.
Laerte veste-se de mulher há mais de um ano. Saia, vestido, maquiagem, salto alto, cabelos longos, lá estava ele em um restaurante quando decidiu usar o banheiro feminino. No interior do toalete estavam uma senhora e uma criança de dez anos, que se sentiram constrangidas. Reclamaram ao dono do estabelecimento, que pediu ao cartunista que usasse o banheiro masculino. Criou-se a celeuma, que foi parar na Secretaria de Justiça de São Paulo. O dono do restaurante praticamente pediu perdão a Laerte; a senhora e a criança que encontraram o cartunista no banheiro feminino devem estar em casa se perguntando o que houve com o mundo.
Longe de um discurso moralista – acusação fácil e pueril -, o que se coloca aqui é a confusão que começa na cabeça do próprio requerente ao uso do banheiro destinado a pessoas do sexo oposto ao seu. Em nenhum lugar do mundo banheiro é local destinado a quem opta por ter relações homossexuais ou se considera ‘ele’ ou ‘ela’. Essa é uma questão de foro íntimo e assim deveria permanecer. Toda criança sabe que banheiro é local de ‘necessidades fisiológicas’, ligada ao funcionamento do corpo, não ao que se faz com ele. O corpo de Laerte é masculino. Se ele o torna feminino significa que devemos respeitá-lo como tal, mas ninguém é obrigado a aceitar suas vontades.
Especialmente no caso de Laerte, onde essas vontades são ainda mais confusas. Ele próprio se diz bissexual e afirma usar banheiros masculinos ou femininos de acordo com a situação, o clima, o bel prazer. Dessa forma, qualquer pessoa – travestida ou não – pode alegar o mesmo: “hoje estou com vontade de ser mulher” e pronto, o mundo me entenda. Quem haverá de julgar que o marmanjo, fisicamente masculino, não é tão mulher quanto a menina de dez anos ao seu lado?
Famoso, queridinho da grande mídia, rico e poderoso, Laerte parece ideal para empunhar a bandeira contra a homofobia. Mas, que homofobia? Alguém parou para pensar que meninas de 10 anos talvez tenham medo simplesmente de homens vestidos de mulher em um banheiro feminino? Nesse sentido, muitos homossexuais não estão preparados para lidar com sua própria condição. É preciso ser respeitado e dar-se o respeito. Assim como em qualquer agrupamento social, há gays, lésbicas, travestis e afins sensatos, respeitosos, tranqüilos, assim como há bandidos, desonestos, mentirosos, dissimulados e maníacos. Vale lembrar aqui, para quem acha que a homossexualidade torna alguém menos violento, o caso de um casal gay que violentou uma criança de nove anos e provocou o aborto nela (aqui, outro caso semelhante). Por que qualquer pessoa haveria de aceitar um homem travestido de mulher usando o mesmo espaço íntimo compartilhado por seus filhos, crianças?
Homossexuais não são monstros, nem santos. São humanos e, como humanos, precisam entender seus limites – e esse termina onde começa o do outro, lembram? O direito de Laerte ou qualquer outro travesti aderir a roupas femininas é genuíno. Daí a querer que outros o reverenciem ou se calem diante de abusos como o de querer adentrar em locais destinados a pessoas de um determinado sexo de acordo com a vontade do dia é abuso travestido.

 

[Texto publicado no Jornal A União, edição de 1º de fevereiro de 2012]